“Com um punhado de areia, eu mostrarei o terror a vocês”
Sandman

Em novembro de 1988, foi publicada a primeira edição de Sandman no Estados Unidos, pelo quase-extinto selo Vertigo, da DC (1). A capa ostentou a data de Janeiro de 1989, daí porque comemora-se, neste ano, 30 anos da sua estreia.
Não sei como era a edição americana, mas a frase que dá nome a este post estava escrita na folha de rosto da primeira edição brasileira, com um lindo desenho em que Morpheus deixa a sua areia mágica cair por entre seus dedos.
Não vou me alongar discorrendo sobre a profundidade depressiva, cruel (2) e enigmática desse personagem. Ele prescinde de apresentações.
Tampouco vou me debruçar sobre a riqueza da mitologia criada por Neil Gaiman, dos entrecruzamentos que ele teceu com maestria entre a sua e as diversas mitologias e lendas presentes em diversas culturas do mundo (3). Nada direi sobre a sua família e o misterioso irmão, ou porque ele…. nem sua irmã mais nova e porque ela….. bom… sem spoiler. Vai que você não leu?!
Tampouco vou fazer longos elogios à série e aos diversos personagens coadjuvantes – dos quais Lúcifer é meu favorito -, muitos deles merecedores de spin-offs em quadrinhos ou na telinha – os quais iam e vinham, apareciam e desapareciam através dos diversos arcos da série (4).
Também pouco há a se falar sobre a belíssima arte de Sam Keith, Mike Dringenberg, Malcom Jones III, Shawn McNaus, Kelley Jones, Philip Craig Russell e do meu favorito Michael Zulli.
Nada disso.
Eu vou contar como eu conheci o personagem e como me apaixonei por ele e por tudo que Neil Gaiman escreve.
Era novembro de 1989.
Ou início de 90?
Talvez um pouco depois. Não me recordo ao certo.
Sei que a primeira edição brasileira é de 1989.
Eu morava no alto de uma longa ladeira.
Subia e descia aquele calvário todos os dias para ir e voltar da escola.
Na esquina da rua, havia uma pequena banca de jornal que vendia – além de jornal – revista de tricô, pornografia e outras coisas inúteis (he he he).
O jornaleiro era um velho que fumava igual a uma chaminé e, por alguma razão, minha memória diz que ele tinha um cheiro horrível. Eu passava ao largo daquela casinha de metal enferrujado e nunca comprei nada lá. Jamais compraria.
Eu comprava minhas revistas em quadrinho (Marvel, em sua maioria, e Batman), em uma banca de jornal que ficava algumas ruas distante. Era uma banca linda. Grande e iluminada. Daquelas em que você entra e tem tudo organizado em uma prateleira com a sua altura, exatamente onde você sabe que estarão as suas revistas preferidas.
O simpático português que era dono da banca ou os seus filhos costumavam separar para mim as revistas que eu colecionava. Havia até um banco e, se eu quisesse demorar um pouco ao voltar para casa (ou para ir à escola), eles me deixavam ficar sentado lendo X-Men vs a Ninhada. Se eu estivesse muito atrasado, ia lendo pela rua mesmo. Lendo e andando. Desviando ou sendo desviado pelos adultos. Foi nessa banca onde eu comprei Cavaleiro das Trevas.
Um dia eu estava voltando para casa, subindo a inevitável ladeira e – como fazia todos os dias – carregando a mochila nas costas como um fardo, quando notei, pendurada por um pregador de metal na banca de jornal do velho, uma estranha revista. A capa era um rosto desenhado em lápis com uma expressão vazia e os olhos brancos brilhantes. Os traços, violentamente rabiscados, pareciam vento e vazavam da face sombreada. A arte era emoldurada por pequenas fotografias de prateleiras onde se viam várias coisinhas curiosas. Uma colagem. O nome no alto da capa era algo diferente. Lembro que não ter conseguido ler o título de primeira (Seria Sanoman?). Talvez por isso eu tenha me focado na capa, tentando entender o que estava escrito.

Não havia o símbolo da DC. Nem o da Marvel. Mas, na hora eu estava certo de que era uma revista em quadrinho. Fiquei curioso, mas mantive o passo e continuei a subir a minha infindável ladeira.
No dia seguinte, fui à minha banca preferida e procurei pela revista. Não a encontrei. Anos depois eu entendi: a minha banca recebia revistas da Abril, e Sandman estava sendo publicado pela Globo, que deveria ter uma distribuição precária.
Enfim. Passado algum tempo, resolvi comprar a revista com o velho senhor fumante e fedorento.
Não me recordo se ele foi simpático. Mas era ele quem vendia Sandman e, depois do primeiro volume, eu não consegui parar de ler. Foi arrebatador. Nunca havia sentido nada igual com uma revista em quadrinho. Cada capa era uma viagem em si, uma emoção própria. A arte de Dave McKean me hipnotizou. E a edição brasileira da Globo tinha um luxo que foi elogiado pelo próprio Neil Gaiman: em lugar de propaganda, o verso da revista mostrava uma ampliação de um detalhe da capa. Era sensacional!
O suspense e o terror logo na primeira edição (o início do arco Prelúdios & Noturnos) me prenderam de forma aterradora (imagina ficar dormindo por 30 anos??? Imagina não conseguir distinguir sonho da realidade??? Imagina não conseguir dormir e vagar pelo mundo até enlouquecer??? Imagina ser aprisionado por décadas e décadas e décadas em uma redoma de vidro??? Imagina o eterno despertar de um pesadelo, dentro de um pesadelo, dentro de um pesadelo… ???).
Daí em diante, eu caminhei fiel e feliz por Casa de Bonecas, Estação das Brumas, Um Jogo de Você, Fábulas e Reflexões, Vidas Breves e cheguei ao Fim do Mundo.
Eu retornava àquela banca todos os meses para adquirir o novo episódio, a nova capa, a nova história e, suspeito, o velho (que se mostrara muito simpático, afinal) só recebia um único exemplar e eu era o seu único comprador. Todos os meses, estava eu lá, comprando Sandman de uma banca que vendia jornal, revistas de tricô e de pornografia. Quando a edição atrasava (e, no final da era Globo, ela passou a atrasar bastante), eu reclamava, mas o velho me assegurava que a revista chegaria e ele a guardaria para mim.
Passei a desejar bom dia para ele sempre que o encontrava e, de vez em quando, comprava outras revistas também. Revistas em quadrinho, gente.
Isso durou exatas 50 edições. Contando os atrasos, mais de 50 meses. Até Sandman nº 50, o último da série Espelhos Distantes.
Chamava-se Ramadan. Era uma história lindíssima, com um desenho deslumbrante. Eu lembro de ter chorado de emoção.

Isso foi em 1994.
Em 1993, eu estudava em um colégio do Rio de Janeiro que tinha acesso à Internet, através das BBSs. E o meu primeiro e-mail enviado na vida (através da conta de um amigo) foi para o Neil Gaiman. Não me recordo como eu descobri o seu endereço eletrônico, mas consegui enviar. Fiz duas perguntas: primeiro, se ele viria à Bienal de Quadrinho no Rio de Janeiro daquele ano e, segundo, se Sandman estava acabando.
Ele respondeu. Disse que não viria, pois havia sido convidado muito em cima da hora, mas que adoraria voltar em 1995. Por fim, me garantiu que Sandman tinha ainda muitas edições pela frente.

Mas em dezembro de 1994, depois de lançar Ramadan, a editora Globo anunciou o fim da série. Foi um baque para mim.
E talvez tenha sido um baque para o velho jornaleiro também, pois, algum tempo depois, a banca dele fechou. A casinha enferrujada, porém, permaneceu ali mais um bom tempo. Abandonada. Um monumento que recordava meu preconceito por um senhor que me vendeu a história em quadrinho mais importante da minha vida.
E eu nunca mais o vi.
Nessa época, eu já comprava alguns quadrinhos importados pela loja Gibiteria e Bárbaras Magias, que ficava no Edifício Central, no Centro do Rio de Janeiro. Principalmente os lançamentos da recém fundada editora Image. Os títulos Spawn (Todd McFarlane) e Wild C.A.T.s (Jim Lee) eram os meus prediletos. Aproveitei então para adquirir as edições americanas de Sandman, já que a Globo havia feito a ofensa de parar de publicar minha hq favorita. Mas era tudo muito precário. Às vezes as edições não chegavam e, quando vinham, demoravam muito. Além do que, o verso da edição não tinha o charme da publicação brasileira.
Anos depois, a editora Globo retomou a publicação de Sandman de onde havia parado.
E eu retomei a minha coleção e fui até o final. Algumas edições eu tinha já tinha em inglês, mas comprei mesmo assim.
Neil Gaiman nunca veio à Bienal de Quadrinho, Sandman teve mais 25 edições exatamente e, um dia, o sonho acabou.
Sandman terminou no número 75, história na qual Neil Gaiman retorna a Shakespeare (personagem que havia aparecido anteriormente), para escrever uma pérola: A Tempestade (história homônima da última peça do famoso dramaturgo inglês).

Adquiri A Tempestade sabedor de que ela era o último capítulo de uma longa história que o Morpheus de Neil Gaiman tinha comigo. Comprei mas não li. Demorei e demorei e demorei tanto que, para ser sincero, fui ler somente há alguns anos. Só então descobri que, no final, havia um autorretrato do próprio autor, com a frase “com um punhado de areia, eu mostrei o terror a vocês.” Era o adeus por mim tanto adiado.
Foi duro largar. Foi um luto.
Em compensação, reli a série inúmeras vezes. Comprei e reli a edição da Conrad. Depois comprei e reli quando a Pixel e outras editoras pequenas tentaram relançar a série. Depois comprei Sandman: A Edição Definitiva, publicada pela Panini. E reli mais uma vez. Comprei cada avulso, cada história separada, cada spin-off, cada conto e revista que saísse sobre Sandman e o seu universo.
Comprei também, há poucos anos, a minissérie Prelúdio, publicada em capa dura pela Panini. Linda edição. E me senti criança relendo meu personagem predileto.
E até hoje cada vez que eu releio, mais coisa eu descubro. Sobre o personagem, sobre a história, e sobre mim. É uma história em quadrinho para a eternidade, como várias outras obras de arte são. Mas, para mim, é ainda mais do que isso.
Obrigado, Neil Gaiman.
***
Na juventude, eu me apaixonei por uma namorada e emprestei a ela as quatro primeiras edições da série original.
Um erro que só a paixão perdoa.
Depois, na era de Internet, eu consegui recomprar usadas as quatro revistas e, voilá, minha edição estava completa de novo! Calejado da vida, eu sabia que jamais cometeria esse erro de novo.
***
Mais velho, quando comecei a me interessar por filosofia e minha leitura ficou mais madura, passei a ler Sandman com outros olhos. E descobri um novo universo na obra de Neil Gaiman. As questões existenciais e éticas postas, as referências literárias, o terror, o suspense, o frio na barriga e, bom,… tem muita coisa lá.
***
Comemorando os 30 anos de Sandman, a Panini está re-lançando a revista (e eu comprando, claro). Já saíram duas publicações. A encadernação parece seguir os mesmos moldes da edição da Conrad: em cada lançamento, um arco completo, mas sem capa dura e sem os extras de comentários, de arte e de estudo dos personagens que constam também da edição definitiva.
De qualquer modo, vale a pena comprar.
Mas atenção!
As primeiras edições nas bancas saíram com alguns defeitos: balões sem texto, erros de diagramação … bem chato. Confira a sua, pois a Panini já confirmou que fará a troca das revistas defeituosas (5).
***
Por fim, uma última notícia.
Ao que parece, a Netflix fechou um contrato para gravar uma série sobre o Sandman.
Há anos que o Neil Gaiman vinha rejeitando roteiros para cinema. Ele chegou a dizer que só aprovaria um roteiro feito por alguém tão apaixonado por Sandman quanto Peter Jackson era por O Senhor dos Anéis (eu!! eu!! eu!!).
Talvez, com os sucessos de Deuses Americanos e Good Omens na Amazon Prime, ele tenha percebido que uma série na telinha era possível.
Esperemos.
Até e bons sonhos.
(1) https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/selo-vertigo-vai-acabar-dc/
(2) SPOILER: O que Morpheus faz com Nada foi muito cruel. Morte lhe diz isso na cara.
(3) A releitura de Fiddler’s Green é linda. Eu não sabia o que era. Quando li, só vi um nome. Anos mais tarde, quando soube do que se tratava, fiquei de queixo-caído. Lindo demais.
(4) Barbie (Barbie e Ken, de A Casa de Bonecas), Hob Gadling e Unity Kincaid retornam de maneira espetacular ao longo da série.
(5) http://www.universohq.com/noticias/apos-erros-panini-fara-recall-de-sandman-edicao-especial-de-30-anos/
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