Canto do King: O Cemitério e Revival

Coluna Canto do King - Larissa Prado - Canto do Gárgula
Coluna Canto do King – Larissa Prado

Os mortos estão vivos

Na terceira análise de obras do escritor Stephen King, trago para a Coluna Canto do King duas histórias que têm como fio condutor a linha tênue que separa a vida e a morte: O Cemitério e Revival. Ambas as publicações são da Editora Suma e a tradução de O Cemitério fica ao encargo de Mário Molina e de Revival fica ao encargo de Michel Teixeira.

Aparentemente, as obras não possuem ligações evidentes, mas à medida que acompanhamos a descida dos personagens no abismo da loucura por conta da incapacidade em lidar com perdas notamos diversos traços comuns entre as narrativas.

Vida e morte conectam as duas histórias

O Cemitério ganhou adaptação nos cinemas sob a direção de Mary Lambert no ano de 1989 intitulado Cemitério Maldito assim como a obra literária é um filme assustador. Revival já foi inspirado em outro grande clássico do horror, Frankenstein, de Mary Shelley.

Nas duas obras acompanhamos a trajetória de personagens que sofrem perdas trágicas. A dor do luto influência a forma com que lidam com suas crenças religiosas e valores morais.

E se você pudesse trazer os mortos de volta à vida?

Em O Cemitério acompanhamos a vida de um jovem médico, Louis Creed, que se muda com a família para uma nova cidade. No início do livro, o clima é de animação esperançosa em um futuro melhor para ele, a esposa Rachel, a filha mais velha Ellie e o filho Gage.

O Cemitério - Stephen King - Editora Suma - Canto do Gárgula
O Cemitério – Stephen King – Editora Suma

No novo endereço conhecem um personagem importante para a narrativa, o vizinho Jud. Ele é um antigo morador cheio de superstições e conhecimento sobre o passado sombrio do lugar. É Jud o responsável por introduzir o aspecto sobrenatural na história. Ele guiará, de forma ingênua, Louis Creed para o abismo da loucura quando o jovem médico perde o filho Gage vítima de um atropelamento na porta de casa.

Antes desse fato decisivo, há uma preparação de Louis para a morte do filho. Como se algo pairasse como um presságio durante seu dia-a-dia. Louis trabalha no pronto-socorro da universidade local e acaba presenciando a morte do estudante, Pascow. A imagem do garoto passa a visitá-lo em pesadelos falando sobre morte. Louis começa a ter episódios de sonambulismo.

Depois da morte do filho, o gato da sua filha mais velha morre atropelado enquanto ela está viajando com a mãe. Jud fala sobre um antigo cemitério de animais onde crianças sepultam seus bichos de estimação, o próprio vizinho Jud foi uma dessas crianças. Louis conhece o local com a família, não há nada de excepcional lá além do fato da placa estar escrita com uma grafia infantil errônea: Pet Sematary.

Além do cemitério de animais

Porém, existe uma região misteriosa além do cemitério de animais que esconde algo. Aqui Stephen King introduz seu universo paralelo de horror.

No terreno além do cemitério há uma antiga região indígena. Segundo a lenda essa região tem o poder de trazer de volta à vida quem é enterrado lá. É durante as longas conversas entre Louis e seu vizinho Jud que conhecemos essas histórias assombrosas. É apenas uma preparação para o que Louis enfrentará ao perder Gage no acidente de caminhão.

A narrativa conduz a mente do personagem, até então cético, para esse universo sobrenatural. Louis promete a si mesmo que jamais visitará o lugar ou fará algo do tipo: enterrar algum ente querido para que retorne à vida.

A angústia nessa história está no fato de Louis ceder lentamente aos lapsos de loucura pela morte do filho. Há um embate feroz dentro dele cada vez que ele sonha e se projeta até o lugar, após a morte do filho. A incapacidade humana de lidar com a morte é o que conecta essas duas histórias.

De fato, Louis acaba desenterrando o corpo desmembrado de Gage para enterrar no lugar maldito além do cemitério de animais. A sequência de cenas do ato de desenterrar a criança e transportá-la até o lugar é cheia de descrições tenebrosas. Quando o pai precisa “juntar” as partes que estão desconectadas do corpo do filho no lençol nos enche de repugnância. Você se questiona se no lugar do protagonista faria o mesmo.

Escolhas morais e o drama humano

O livro nos leva a questionar várias questões sobre escolhas morais e sobre o que vem a ser normal e anormal nas atitudes de Louis. Ele está sendo guiado apenas pela dor lancinante e pela culpa de ter deixado o filho morrer numa estrada esmagado por uma roda de caminhão? Ou há uma influência sobrenatural sobre seus atos? As duas possibilidades se mesclam, Louis está enlouquecido pela dor e pela culpa e se tornando suscetível ao poder do lugar.

Seu vizinho Jud alertou o tempo inteiro sobre o “poder” acenstral do lugar. Como traço característico de quase todos personagens de King, que em algum momento perdem o fio da sanidade, Louis também se torna suscetível ao poder do sobrenatural através de uma mente fragilizada, exposta a traumas e medos.

De volta à vida, mas não tão vivo

Gage volta à vida depois de uma sequência de cenas horripilantes, mas não é o mesmo garoto que morreu. Quando alguém volta à vida é como se voltasse sem alma, um zumbi, um ser cheio de astúcia e crueldade.

Nesse aspecto reside a “coisa ruim” da obra de King, ela vem através dos mortos que ganham a vida . Gage se transforma em um dos personagens mais aterrorizantes de King, um bebê assassino e insano. Ele mata o vizinho Jud a facadas enquanto gargalha como um bebê feliz, e quando a mãe retorna para casa Gage a ataca também.

Mais do que o retorno dos mortos enlouquecidos o que confere o aspecto tenebroso à história é a descida que Louis precisa fazer até o lugar maldito e as coisas que vê se moverem por lá.

Revival: entre a ciência e religião

Em Revival, nós acompanhamos o relato de um homem chamado Jamie Morton. A narrativa vai desde sua infância religiosa e feliz sob a influência do jovem e divertido pastor Charles Jacobs até sua vida adulta de músico ocasional e dependente químico.

Revival - Stephen King - Editora Suma - Canto do Gárgula
Revival – Stephen King – Editora Suma

Os dois personagens da obra são Jamie, o narrador e Charles Jacobs, o cerne da história. Em Revival a questão da perda recaí sobre Jamie através de aspectos existenciais. O garoto desperdiça sua vida em drogas e em uma vida errante, sem quaisquer conquistas significativas ou relações sólidas. É uma perda de si mesma.

Na contramão está Charles Jacobs, o elemento que recorrente na vida de Jamie desde a infância. Jacobs sofre a perda do filho e da adorável esposa jovem em um horrível acidente de carro. Isso o faz questionar todos seus preceitos religiosos enquanto pastor. Jacobs passa a duvidar do poder divino e se concentra ainda mais na sua paixão pelo uso científico da eletricidade dando a ela um aspecto de deidade.

Ele transfere suas crenças religiosas para a Física, se torna um viciado em experiências bizarras através do uso de choques. Jacobs é apresentado para nós como um homem que caiu no abismo da loucura após a perda da família e a vida do narrador Jamie está interligada à dele.

Boas doses de tensão e suspense

A cada momento a narrativa nos promete reviravoltas que não acontecem o que agrega um caráter apreensivo na leitura. Esperamos revelações de Jacobs que não chegam. A sua loucura cresce, mas não conseguimos mensurar onde ele será capaz de chegar. Nossas impressões são as mesmas de Jamie e vamos descobrindo a verdade sobre Jacobs junto com o narrador.

A incapacidade de lidar com perdas despertou em Jacobs uma Síndrome de Deus. Ele passou a buscar o elo de ligação entre a vida e a morte através da eletricidade. Empreendeu o resto de sua vida a fazer pessoas voltarem a andar, se recuperarem de doenças terminais entre outras graves moléstias através do seu poder terapêutico com a eletricidade.

De pastor a um showman, Jacobs se tornou uma atração mundial e curou Jamie do uso das drogas dando a ele uma vida digna e limpa. Jamie se sente grato, mas sua relação com Jacobs é permeada por desconfianças. Ele sempre nota um traço insano no pastor, algo que nunca está certo em seus trejeitos e ideias de grandiosidade.

Herdeiro de “Frankenstein”

Vemos a influência clara do romance clássico de Mary Shelley à medida que Jacobs passa a falar sobre seu projeto de vida: trazer mortos de volta à vida. Sem preocupar-se com as implicações reais que isso acarretaria, como acontece com a mente pretensiosa e inventiva de Victor Frankenstein e sua obsessão em desafiar o poder da morte em nome ciência. No clássico de Mary Shelley e em Revival há a deificação da ciência.

As últimas páginas de Revival são um verdadeiro show de horrores. Jacobs alcance o ápice de sua loucura e vemos o que era seu projeto de uma vida inteira.

Em uma noite de tempestade, isolado e com Jamie como ajudante, ele realiza o procedimento de trazer uma antiga conhecida de ambos, já morta, à vida. A mulher retorna à vida, mas não é ela mesma, assim como acontece com aqueles que são sepultados no lugar maldito de O Cemitério, aqui a mulher volta em forma de uma coisa medonha e abre um portal para o mundo dos mortos onde criaturas e imagens tenebrosas se sobrepõe.

Desfechos devastadores

O embate final entre Jaime e a coisa que Jacobs evocou com seu projeto de vida através da eletricidade nos remete ao trágico desfecho de Louis Creed em O Cemitério.

Em ambas histórias não encontramos finais que nos alivie. Pelo contrário, King deixa em aberto para uma série de impressões inquietantes sobre a relação frágil que o ser humano possui com a morte em todos seus aspectos naturais e sobrenaturais.

Jaime termina o livro em uma consulta com o psiquiatra. Nesse ponto Stephen King deixa claro que o personagem não saiu incólume das experiências bizarras que viveu ao lado de Jacobs.

Os dois livros mais assustadores de Stephen King

São duas histórias assombrosas que merecem destaque entre as mais perturbadoras criadas por King. Pois, lidam não apenas com a morte, mas também com o impacto de grandes perdas, a transvaloração de valores, os limites entre a loucura e a sanidade, e a presença da realidade paralela dos mortos que voltam à vida.

Larissa Prado - Escritora - Canto do Gárgula
Larissa Prado – Escritora

A forma como King trabalha a questão dos zumbis em ambas narrativas é reflexiva. Ela foge à clássica concepção dos mortos-vivos que retornam à vida débeis e sedentos por carne humana. Tudo o que envolve o aspecto dos mortos-vivos nestes livros é o que lhes garante o lugar entre os mais tenebrosos na carreira do autor.

Então é isso, pessoal. Espero vocês na próxima segunda-feira para falarmos sobre o primeiro livro do King que li: Carrie, a estranha!

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