Hinos à Noite, de Novalis

Fiz a leitura, duas vezes seguidas, de Hinos à Noite (1800), do autor alemão Novalis (1772 – 1801). A obra, que mescla prosa lírica e poesia, é considerada o marco fundador do romantismo alemão. Em 2020, a Editora Sebo Clepsidra lançou uma belíssima edição bilíngue (alemão/português).

Hinos à Noite - Novalis - Sebo Clepsidra
Hinos à Noite – Novalis – Sebo Clepsidra

Assim, preencheu uma lacuna, pois edições anteriores da obra encontravam-se esgotadas no Brasil. A tradução é de Felipe Vale da Silva, que também assina o excelente posfácio. Conforme é explicado no próprio livro, o tradutor alcançou um feito inédito: conseguiu manter as rimas e cadências dos versos de Novalis. E que desafio falar de uma obra tão enigmática quanto sublime.

Não é um livro de terror

Em primeiro lugar, vamos logo explicar uma coisa: Hinos à Noite, de Novalis, não é um livro de terror. Ou ao menos não é como aqueles que os leitores aqui do blog estão acostumados a encontrar em nossas resenhas. É um texto que fala, no entanto, de elementos simbólicos que são explorados com frequência nesse gênero. Como o título já sugere, o narrador está encantado pela Noite e por tudo que ela representa. Mais do que ausência de luz solar, ela é mistério, imaginação, sonho, desejo, melancolia, morte, eternidade.

“Mais divinos que qualquer uma de tuas estrelas fulgurantes são os olhos cravados no infinito que a Noite abriu dentro de nós”.

Hino I

Apresentação

Essa edição de Hinos à Noite começa com uma apresentação escrita pelo escritor e pesquisador Claudio Willer, que estudou a obra de Novalis na academia. Certamente, é uma ótima contextualização sobre o autor e a obra. Alguns trechos do texto, contudo, talvez não falem de forma clara ao leitor comum. Pois, por vezes, ele parece se dirigir a estudiosos de literatura e filosofia. Assim, pode ser necessário ter o Google do lado para melhor captar algumas referências (eu usei, confesso). Mas vale a pena, pois ele dá uma verdadeira aula.

Destacando alguns dos pontos dessa apresentação: Willer fala do impacto que o romantismo teve na sociedade, privilegiando a imaginação e o sonho em detrimento da razão e do real. Por isso, a subjetividade do indivíduo ganha protagonismo, conforme se defende uma visão poética da existência, que seria um conhecimento superior. A simples constatação ou explicação dos fatos ao redor seria uma maneira medíocre de interpretar a realidade humana. Mais do que um movimento literário, portanto, o romantismo pretendia ser uma filosofia de vida.  O pesquisador cita Octavio Paz, que bem sintetizou o anseio romântico: “tornar poética a vida e a sociedade” (pág. 10).

Willer também afirma que o romantismo, em seus primórdios, já trazia os elementos inovadores que seriam explorados por grandes autores de gerações seguintes. E, decerto, Novalis foi a peça central de tudo isso.

Os hinos

Hinos à Noite é formado por seis hinos, ou seja, seis partes de composições líricas. Os três primeiros são de prosa poética. Já nos hinos IV e V, a prosa divide espaço com a poesia. Por fim, o hino VI é o único que é somente poesia e também o único que tem um título: “Anseio pela Morte”.

Antes de adentrar nessa obra, deixe boa parte de sua racionalidade do lado. Afinal, não é livro para se ler tentando entender tudo e formar uma história clara na cabeça. Inegavelmente, é uma leitura muito mais sensorial, onírica, onde a busca deve ser mais por impressões e sensações, e não explicações. Por exemplo, se você já assistiu algum filme de David Lynch, vai ter uma ideia do procedimento. Além disso, tenha um dicionário por perto, você vai precisar. O vocabulário traz algumas palavras pouco usuais. Não compreender o sentido delas irá, decerto, prejudicar a experiência.

Texto por vezes hermético, Hinos à Noite demanda postura ativa, participativa. Um leitor preguiçoso dificilmente atravessará essa obra em sua plenitude. Devemos nos doar ao texto, contribuindo com nosso próprio repertório poético, simbólico e associativo para a construção pessoal de sentidos oferecidos e possíveis, não impostos de forma fechada pela obra. Uma vez que se faça essa imersão, usufruindo da liberdade interpretativa, se terá nas mãos uma leitura potente, inovadora e transcendente.

E a história?

Não existe exatamente uma trama em Hinos à Noite. A narrativa é uma reflexão poética, filosófica, feita em primeira pessoa por um personagem masculino indefinido. Seria, talvez, o próprio Novalis. Ele utilizou, inclusive, fatos reais de sua vida, como a morte de sua jovem amada. Ao longo dos hinos, o autor expressa sua melancolia e seu encanto pela Noite em toda sua carga simbólica. A partir disso, ele vivencia um intenso processo de transformação. É um texto envolvente, com muitas camadas de leitura e de interpretação possíveis e, por isso, é necessário que o leitor se mantenha atento, em um esforço de cocriação.  

Posfácio que poderia ser prefácio

O posfácio é assinado pelo tradutor Felipe Vale da Silva. É um texto bastante didático, em vários aspectos. Ele conceitua e contextualiza o romantismo como movimento de grande relevância mundial. Para citar algumas das palavras do autor: “uma teoria estética e produtos literários bem-sucedidos o bastante para nos reensinar a ler o mundo” (pág. 78). Ou ainda: “a prática de reencantamento do mundo” (pág. 84). Se é possível arriscar uma síntese desse posfácio tão incrivelmente rico, eu destacaria o momento em que Felipe explica que o romantismo é um reconhecimento de que a racionalidade não dá conta dos anseios humanos (pág. 90). O tradutor e pesquisador fala também sobre a importância que Novalis teve para os rumos da cultura, respingando até nos dias de hoje. E destrincha várias partes da poética de Hinos à Noite, nos ofertando algumas chaves de compreensão.

O último dos paratextos também é de Felipe, onde ele apresenta um breve, porém esclarecedor resumo da vida e da obra de Novalis. Aqui, ele sintetiza um dos mais relevantes aspectos do romantismo: a conquista da autonomia da literatura. Nas palavras do autor, a literatura se tornava “independente dos ditames do entretenimento, da defesa da religião, da moral ou do Estado, e mesmo da coerência; ela se vertia em tecnologia da inteligência humana, única e e prenhe de inúmeras possibilidades” (pág. 100).

Um primor de edição

A Editora Sebo Clepsidra, como sempre, entregou um trabalho impecável. Edição com capa dura, design elegante, ricamente ilustrada por colagens de Filipe Florence Rios, que assina o projeto gráfico. Como resultado, temos um livro onde o encanto do texto está em perfeita harmonia com a criação visual. No paratexto “Sobre as colagens”, o artista explica seu processo criativo. Além disso, ele apresenta várias colocações que são igualmente importantes para abrir outros horizontes de intepretação da obra.

Dica de leitura

Se você quiser começar a ler os seis hinos já sabendo melhor onde vai pisar, sugiro ler todos os paratextos antes. Sem dúvida, eles ajudam na melhor compreensão da obra. Foi por isso que li duas vezes seguidas. Quando terminei de ler tudo que vem após os hinos, tive outro entendimento, então voltei ao início e recomecei. A experiência foi completamente diferente. Ou então, se jogue na leitura na ordem como está no livro. Mas depois, assim como eu fiz, releia todo assim que terminar. Vai por mim.

Dois séculos depois, ainda atual

Ainda que mais de duzentos anos tenham se passado desde o lançamento de Hinos à Noite, a filosofia de vida proposta por Novalis e seu romantismo parece mais atual do que nunca. Nesse contexto de angústia constante em que estamos mergulhados, a ideia de tentar enxergar o mundo por lentes mais poéticas soa não só como uma boa opção, mas como uma necessidade. É preciso ressignificar a existência. Ainda bem que temos a poesia.

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