O medo do “outro” é um assunto recorrente na literatura. Para o Gótico Imperial, no entanto, essa figura do estrangeiro é muito mais do que um tema, é sua principal ferramenta.

Todo e qualquer tipo de arte é um ato político. Isso porque, independente de ser uma pintura, uma escultura, uma obra de ficção ou autobiográfica, a arte transmite o contexto sociopolítico no qual ela está inserida.
Nesse sentido, a Literatura Gótica Imperial cumpriu duas funções: a de ser um grande espelho refletor de uma sociedade britânica que acreditava na sua supremacia; e a de ser uma poderosa ferramenta de dominação e domesticação do próprio povo inglês. Esse é o assunto do nosso artigo de hoje.
O que é Literatura Gótica
Em primeiro lugar, é importante entender o que é Literatura Gótica. Essa vertente literária nasceu em 1764, com a publicação do romance O castelo de Otranto, do escritor inglês Horace Walpole (em breve teremos uma resenha).
Suas principais características são:
- Espaços imensos e labirínticos, como castelos medievais, abadias abandonadas, casarões antigos e florestas assombradas;
- Atmosfera densa e melancólica;
- Presença do sobrenatural;
- O passado como um lugar perigoso, onde se escondem segredos obscuros;
- Personagens fantasmagóricos ou monstruosos.
A Literatura Gótica nasce e atinge seu ápice durante o oitocentismo. Nesse período, a Inglaterra está passando pela Revolução Industrial e pelo Iluminismo. Ou seja, o rápido avanço tecnológico transformou o futuro em algo incerto, enquanto o passado se tornou um lugar obsoleto, onde não mais se encontravam as respostas dos conhecimentos antigos.
Além disso, o total foco na razão proporcionado pelo Iluminismo, fez com que as emoções fossem consideradas primitivas. O que incitou as pessoas a guardarem para si aquilo que sentiam. Desse modo, a Literatura Gótica é, por excelência, um gênero que explora e representa os medos e anseios da época em que está inserida. Bem como suas personagens monstruosas são exatamente a personificação desses sentimentos. Assim, os romances góticos passaram a ser vistos como espaços seguros para explorar tudo o que a sociedade reprimia.
É importante ressaltar que a Literatura Gótica era considerada uma literatura de baixa qualidade. Isso fez com que o preço das obras fosse inferior às de filosofia e poesia, por exemplo, fazendo com que o Gótico caísse nas graças das massas inglesas. Fato que o Império Britânico soube usar a seu favor.
O Império Britânico
A princípio, a Inglaterra parecia viver um momento de ouro. Além de ser palco da Revolução Industrial, do Iluminismo e da ascensão da Literatura Gótica, por exemplo, uma das frases que melhor diz respeito à época é que “o sol nunca se punha no Império Britânico”, dado seu domínio em terras estrangeiras.

A realidade por baixo dessa fachada, entretanto, não era tão reluzente. Isso porque o Império enfrentava dificuldades externas, bem como internas. Primeiramente, porque várias colônias que já estavam saturadas da forma violenta com a qual eram tratadas, começaram a se rebelar. Isso resultou em lutas que foram verdadeiros massacres, abalando as garras do Império.
Os povos colonizados, no entanto, não eram os únicos que precisavam ser contidos. Ao passo que ocorriam as rebeliões, os nervos estavam exaltados dentro do próprio território inglês. A Revolução Industrial intensificou ainda mais um problema que a Inglaterra já enfrentava: as diferenças de classes.
As parcelas mais pobres da população procuravam uma maneira de melhorar suas vidas, e esse descontentamento também era algo que precisava ser detido.
O que é Gótico Imperial
É nesse período turbulento que nasce o Gótico Imperial – ou Colonial, como também é conhecido. Suas obras vão trabalhar extensivamente a figura do “outro” a partir de dois questionamentos principais:
- Qual é o efeito direto sobre a identidade inglesa ao ficar muito tempo em terra estrangeira, em contato com crenças de povos que o europeu considerava bárbaros, supersticiosos e atrasados?
- Qual é o efeito da presença desse representante das colônias dentro da Inglaterra?
O primeiro romance do Gótico Imperial foi The story of Henrietta (1800), da escritora Charlotte Smith, que também pertenceu ao movimento do Gótico Feminino. A obra de Smith trabalhou, pela primeira vez em um romance, elementos como contatos raciais, novos espaços (uma vez que a heroína se vê obrigada a se mudar para a Jamaica), tensão erótica, e os medos de contaminação do inglês diante de uma cultura considerada primitiva.
O florecimento do estilo
Para o pesquisador Patrick Brantlinger, no entanto, o Gótico Imperial floresceu de 1875 a 1916, com a publicação das obras As minas do rei Salomão, de H. Rider Haggard, e Greenmantle, de John Buchan.
Nesse sentido, o romance que representa o auge dessa vertente Gótica é A Ilha das Almas Selvagens, de H. G. Wells, publicada em 1896 (conhecido no Brasil como A ilha do Dr. Moreau – leia nossa resenha aqui). Além dele, obras como Drácula (1897), de Bram Stoker, e A pata do Macaco (1902), de W. W. Jacobs, são grandes clássicos do movimento.
Assim, de acordo com Brantlinger, os três principais temas do Gótico Imperial são:
- A regressão individual ou o processo de se tornar nativo;
- Uma invasão da civilização pelas forças do barbarismo ou do demoníaco; e
- A diminuição das oportunidades de aventura e heroísmo no mundo moderno.
A massa inglesa como o “outro”
Se por um lado, a presença do “outro” nativo de terras colonizadas era perigosa e ameaçadora, assim também o era o “outro” nascido do próprio berço britânico.
Como dito anteriormente, um dos maiores produtos gerados pela Revolução Industrial na Inglaterra foi a desigualdade social. Enquanto a burguesia enriquecia rapidamente com o avanço das tecnologias, o proletariado e as classes mais baixas ultrapassavam cada vez mais a linha da pobreza. Essa parcela da população se tornou o “outro” inglês, considerado tão infeccioso quanto o “outro” colonizado.
Diante de tantas colônias e dos avanços da época, nasceu o desejo de tentar uma vida melhor em terras estrangeiras, ou mesmo procurar mecanismos que possibilitassem uma mudança de vida – ou seja, tentar ganhar mais dinheiro – dentro da própria Inglaterra. O conto A pata do Macaco, evidencia exatamente isso ao retratar os White, uma família de classe baixa, pertencente ao proletariado.
Quando recebem a visita de um conhecido, um militar que trabalhava em uma das colônias do Império, e que traz consigo um artefato místico – a pata do macaco – as provações que os White precisarão passar começam. A obra aborda os perigos de se envolver com crenças primitivas e os castigos que estão reservados para aqueles que querem mais do que podem ter.
Sem dar qualquer tipo de spoiler, e reforçando a importância de leitura, o conto A pata do Macaco serviu de grande aviso às classes baixas: tudo o que eles precisavam o Império lhes proporcionava – e por isso não deviam desejar nada a mais.
Lendo as entrelinhas
Grandes histórias pertencem ao Gótico Imperial. Drácula (leia nossa resenha aqui), A Ilha das Almas Selvagens (leia nossa resenha aqui), A pata do Macaco (leia nossa resenha aqui), A Marca da Besta, Jane Eyre, dentre tantas outras fazem parte dos grandes clássicos da literatura de ficção, conquistando milhares de leitores até os dias de hoje.

Existem poucas atividades tão prazerosas quanto se sentar no sofá depois de um dia cansativo, escolher a posição mais confortável, e se entregar às páginas de um livro envolvente. É por isso que muitas pessoas acreditam que literatura é mero entretenimento.
Nós, leitores devotos, no entanto, entendemos que os livros são muito mais do que isso. Eles estão sempre nos ensinando algo, seja de forma direta, seja nos textos escondidos em suas entrelinhas. Repito o que disse logo no início do artigo: toda forma de arte é política e nos conta sobre o momento sociocultural do período em que está inserida. Basta olharmos com um pouco mais de atenção.
Considerações Finais
O Gótico Imperial é uma vertente fascinante que nos proporcionou grandes obras. No entanto, é importante lembrar que, antes de mais nada, ele fala sobre o medo e o preconceito de tudo aquilo que os britânicos consideravam diferente do que conheciam, inclusive entre eles mesmos.
Por fim, deixo aqui uma citação de Emanuelle Schok Melo da Silva, em seu artigo The Monkey’s Paw – Through the lenses of Imperial Gothic and Psychoanalysis, que resume com precisão cirúrgica o que foi esta vertente:
“A ideologia propagada era que o Império era o único lugar seguro para as pessoas estarem.”
Emanuelle Schok Melo da Silva
E vocês, o que já leram do Gótico Imperial?
Referências
- No canal Fantasticursos
- “The Monkey’s Paw”: Through the lenses of Imperial Gothic and Psychoanalysis – Emmanuelle Schok Melo da Silva
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O livro “A Abadia de Northanger”, de Jane Austen, é uma ótima sátira desse gênero. A Jane Austen não era muito fã do gótico, e criou esse romance com uma protagonista jovem com a cabeça cheia desses livros. É bom demais